Carta de um morto vivo

Postado por Jefferson Bruno On 12:06

Carta de um morto vivo

Nem lembro bem quando morri, parece que faz algumas semanas. Meu corpo se deteriora cada dia mais. Os demais mortos vagam pelas ruas a procura de vivos. Já perdi as minhas esperanças de encontrar cérebro fresco.

O osso do meu tornozelo já esta aparecendo, é complicado viver assim... O mundo tornou-se um verdadeiro inferno para mim. Não nos comunicamos uns com os outros, apenas gruímos feito animais. Quando se escuta algum barulho, todos correm esfomeados e atordoados. Não sabem mais aonde irem ou o que fazerem.

A noite alguns andam cambaleando parecendo bêbados, outros ensaiam um sexo animalesco e bizarro. Desde que morri, vivo neste apocalipse constante. Apesar de não conseguir me lembrar o legítimo motivo de minha morte, acredito ter sido assassinado pois meu ombro esquerdo até a parte do peito direito estão separados.

Talvez tenham me passado a serra elétrica, ou coisa do tipo... Embora meus pensamentos hoje não sejam mais tão contundentes como outrora. Bem poderia ter sido a tentativa de defesa de um vivo ao se proteger de minha gula por cérebro.

Ainda tenho olfato, sinto a podridão de minha carne e alguns vermes passeando por meu corpo em estado de putrefação!
Como morto, não sinto dor ou angústia, parece que meus dias seguem lentos e rotineiros. Não me comunico com outros por linguagem oral, mas por gestos, instintos, movimentos...

Parece que meu fim está próximo, não sei ao certo... Enquanto ainda possuir carne em meu corpo, continuarei vivendo até que me torne um esqueleto e enfim, possa descansar em paz. Se ainda pudesse me alimentar.... Um bom cérebro, hummm. Comi algumas dúzias logo que a epidemia se alastrou pela cidade.

Lembro quando comi o cérebro de minha mulher. Ela estava dormindo, me aproximei e abocanhei seus cabelos louros sentindo o gosto do couro cabeludo e o sangue em meu paladar... Nem consigo descrever a delícia que foi comê-la. Ela nem resistiu muito, logo estava morta e sem cérebro... Assim que acordou da morte física, caminhou sem rumo e sem olhar para mim... Decerto não me perdoara pelo ato.

Para mim, pouco me importava... A fome que sentimos é algo incontrolável. Sentimos o cheiro de vivos e o aroma de seus cérebros frescos e suculentos. Mas sinto que jamais verei outra iguaria de tal valor... Foram-se todos. Se ainda há vivo pela terra devem viver em buracos ou barcos, afastados e longes de mim.

Cabe a mim, esperar que minhas carnes se estraguem e talvez assim, possa descansar em paz... Reiniciar uma nova vida, ou andar como um esqueleto por ai... Quem vai saber... A esperança talvez exista... Só não sei onde encontrá-la.

Gabriel N° 1905 – E
Jornal Nova Era

Xxxxxxxxxxxxxx

Gabriel terminou sua carta e encaminhou ao editor, para publicá-la no jornal da próxima semana. Era um novo começo para o jovem rapaz! Naquele novo mundo subterrâneo, afastado dos mortos vivos, uma nova sociedade se formava, o ínicio de um novo tempo, a esperança.
Ninha Mendes
Publicado no Recanto das Letras em 20/09/2009
Código do texto: T1820714

0 comentários

Postar um comentário